Direitos Subjetivos e Interesses Legalmente Protegidos: Conceitos (in)diferenciados?


1.       Enquadramento:
- Antes de prosseguirmos, cabe referir que a noção de direito subjetivo se encontra ligada com a de relação jurídica, uma vez que os direitos subjetivos públicos integram o conteúdo daqueles e porque são uma condição lógica da existência de relações jurídicas administrativas. É com o reconhecimento de direitos subjetivos que o indivíduo deixa de ser tratado como objeto do poder e se transforma num sujeito de direito em condições de estabelecer relações jurídicas com os órgãos do poder público.
- Dispõe o artigo 266º/1 da Constituição da República Portuguesa: «A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos».
- Deste artigo decorre que o princípio da prossecução do interesse público não deverá ser o único critério da ação administrativa. Sendo indiscutível que esta deve prosseguir o interesse público, também é inegável que se deve respeitar simultaneamente os direitos subjetivos e os interesses legalmente protegidos.
- Este artigo (tal como o 268º/3, 4 e 5 CRP) tem causado muita discussão na doutrina: Existe ou não distinção entre direitos e interesses legalmente protegidos?



2.      Análise Histórica:
- Numa, muito breve, análise histórica, cabe verificar de onde se originou esta querela doutrinária:
- O conceito de direito subjetivo é das temáticas que mais faz correr tinta no Direito Civil.
- No Direito Romano só se concebiam «actiones» (mecanismos de proteção jurisdicional) e não situações ativas substantivas, por isso direito subjetivo no Direito Romano não passava de um conceito desconhecido.
- Apenas com o Jusnaturalismo, se passa a afirmar a existência de Direitos Originários, decorrentes da própria natureza humana.
- Depois veio Savigny e Jhering[1]. Querela que a nós, discentes e docentes de Direito, não é estranha.
- A distinção entre direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos tem surgido através de construções doutrinárias, especialmente na Itália, onde a distinção é de extrema importância pois era o critério que permitia determinar o tribunal competente: A Jurisdição comum julgava os litígios que envolvessem direitos subjetivos, enquanto a Jurisdição Administrativa julgava os litígios que respeitassem interesses legalmente protegidos.
- Marcello Caetano adotou os conceitos e estes passaram não só para a doutrina dominante (como veremos a seguir), como para a legislação (266º/1 e 268º/3, 4 e 5 CRP e 68º e 152º/a) CPA) e para a Jurisprudência.


3.      Conceções:
- Para o Professor Regente Vasco Pereira da Silva, existem 6 principais conceções quanto ao modo de conceber as posições de vantagem dos particulares quanto à Administração.
- Apesar de todas as 6 conceções serem referidas, a nossa análise focar-se-á especialmente em duas: a terceira conceção e a sexta, sendo que são as mais relevantes na doutrina portuguesa.
1) Mera situação de interesse de facto – Confere aos indivíduos legitimidade processual, visto que possuem um “interesse próximo” do da Administração. Particular participa no processo como um auxiliar da Administração e não como titular de direitos face a ela.
2) Direito à legalidade/Direito reflexo - Estes direitos não passariam de consequências reflexas de normas que existem para defender o interesse público.
3) Conceção Trinitária (inicialmente binária - distinção entre direitos subjetivos e interesses legítimos) – Distinguem-se consoante o poder de vantagem do indivíduo resulte imediata e intencionalmente das normas jurídicas, ou seja, atribuído apenas de forma mediata e reflexa.
4) Direitos subjetivos e os interesses legítimos – Distinguem-se, diferentemente da posição clássica acima referida, consoante se trate ou não de uma situação dependente do exercício do poder administrativo.
5) Direitos subjetivos “clássicos” /”ativos” e os direitos subjetivos “novos”/”reativos” - Nas relações administrativas, o particular pode fazer valer direitos subjetivos clássicos «quando exibe pretensões ativas face à Administração», ou direitos reativos «quando foi perturbado na sua esfera vital por uma atuação administrativa ilegal».
6) Uma única categoria de situações jurídicas dos particulares: a dos direitos subjetivos.


4.      Doutrina Portuguesa:
- Na doutrina portuguesa encontramos duas grandes posições:
  •  Por um lado, temos os defensores de que existe uma distinção entre direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos. Esta posição é encabeçada por autores como os Professores Diogo Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, José Carlos Vieira de Andrade e Paulo Otero.
  • Por outro lado, temos a doutrina que nega a distinção entre as duas figuras. Encabeçada principalmente pelo Professor Regente Vasco Pereira da Silva e pelo Professor Pedro Machete.

 - Cabe, agora, fazer uma análise das duas figuras:

           4.1.  Duas modalidades de posições jurídicas distintas que depois se transforma na conceção trinitária:
Em Portugal é defendida pelos professores: Diogo Freitas do Amaral, João Caupers, José Carlos Vieira de Andrade, Carla Amado Gomes.
Nasce no direito italiano entre os meados do século XX até à sua 2ª metade. O que esta corrente defende é que o particular terá sempre posições subjetivas de vantagem.
O ponto de partida é o oposto das conceções anteriores. Passamos de negar posições substantivas para dizer que o particular terá sempre uma posição substantiva de vantagem
O que se defende é que posição substantiva haverá de certeza, mas esta pode variar no conteúdo, grau, poderá corresponder a relações jurídicas administrativas diferentes, etc.
Na lógica do direito italiano, faz-se a distinção entre: direitos subjetivos e interesses legítimosNa altura tal distinção foi criticada por dizerem que não havia critérios lógicos para se proceder à distinção. Mas a doutrina passa a construir os tais critérios lógicos, passando-se a uma certa altura a distinguir, no Direito Italiano, entre: direitos subjetivos (correspondiam a posição diretamente protegidas – expressão que em Portugal vai ser adotada pelo professor Freitas do Amaral) e interesses legítimos (situações indiretamente protegidas – correspondente a uma espécie de direito de segunda categoria, um direito de menor importância, de conteúdo e lógica diferente da dos direitos subjetivos. 
 A partir dos anos 70, com o surgimento dos novos direitos fundamentais, que corresponderão a novas tarefas estaduais como: direito do ambiente, direito à intervenção do Estado na vida económica, social e cultural, entre outros, começa-se então a falar numa terceira categoria que era a dos interesses difusos, onde a proteção subjetiva seria simultânea da proteção objetiva – haveria proteção simultânea de um bem de interesse público que, reflexamente, resultaria na proteção do direito do particular.
Esta conceção que, inicialmente binária, passou a trinitária, assenta em 3 posições substantivas de vantagem:
  •     «Direitos de primeira categoria» - aqueles que a lei dizia, expressamente, que protegiam os particulares e, por isso, recebiam a atribuição de direitos subjetivos.
  • ·    «Direitos de segunda categoria» - correspondiam aos deveres da Administração. A lei estabelecia um dever da Administração, e desse dever, resultava, de forma indireta, a proteção do particular. Ou seja, a posição de vantagem do particular não surgiria de forma intencional pelo legislador – interesses legítimos.
  • ·    «Direitos de terceira categoria» - correspondiam a situações em que o legislador estava a proteger um bem público (ex: ambiente). E ao proteger o ambiente, o particular também seria, reflexamente, protegido pela regulação do interesse público – interesses difusos.
       E temos assim uma construção trinitária.
        
- Exemplifiquemos[3]:
a.  O Conselho Científico admite à preparação a doutoramento quem for mestre ou, independentemente do mestrado, quem tiver média de licenciatura de 16 valores”.
- Para quem defenda a distinção entre as figuras, estamos perante um direito subjetivo, pois todos aqueles que são mestres ou que forem licenciados com pelo menos 16 valores terão o poder de exigir ao Conselho Científico que sejam admitidos à preparação do doutoramento. Quem reunir os pressupostos fixados na previsão da norma terá, então, direito a uma decisão favorável.

b. Os grupos teatrais que, no presente ano, levem a palco a representação de obras de Fernando Pessoa consideradas de relevante impacto cultural, podem beneficiar de um subsídio do Ministério da Cultura até 1000 euros.” 
- Aqui, já estamos perante um interesse legalmente protegido, sendo que nenhum destes grupos teatrais terá qualquer direito. O Ministério da Cultura tem, a seu favor, uma margem de livre apreciação, podendo avaliar os grupos que realmente tiveram um “relevante impacto cultural”. Não se encontra, assim, vinculado a conceder subsídios a todos os grupos. O interesse legalmente protegido destes grupos consistirá em que a sua situação seja objeto de apreciação administrativa sem nunca puderem exigir o subsídio. Podem, no entanto, exigir que o seu interesse não seja prejudicado ilegalmente. Caso tal aconteça, os interessados podem impugnar a decisão e obter a anulação pelos tribunais, mas isto não significa que eles terão direito ao subsídio, significa apenas que podem remover o obstáculo ilegal que obsta a que o seu interesse seja satisfeito.

- Existem, contudo, algumas «nuances» a esta posição
  • Os professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos parecem defender a distinção, porém esta «não pode ser levada demasiada longe. Direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos[4] são apenas diferentes graus de tutela conferida pela ordem jurídica a posições jurídicas subjetivas e as diferenças entre ambos têm, portanto, índole essencialmente quantitativa e não qualitativa”.
  • De facto, para estes autores, os respetivos regimes das figuras são bastante similares, como a legitimidade para a invocação dos direitos de informação e participação, a legitimidade de queixa ao Provedor de Justiça, o regime de revogação de atos administrativos favoráveis válidos e, entre outros, o regime substantivo e contencioso da responsabilidade civil da administração.
  • Para o Professor Vieira de Andrade a distinção deverá ser feita entre posições jurídicas substantivas (onde se incluem os direitos e interesses legalmente protegidos ou simplesmente “direitos”) e os interesses simples ou de facto.
  • Ou seja, o professor parece ter uma posição intermédia pois, coloca na mesma categoria os direitos subjetivos e os interesses legalmente protegidos, mas dentro dessa mesma categoria o autor admite que existe uma variedade resultante das diferenças que existem entre as figuras do “direito subjetivo” e do “interesse legalmente protegido” quanto à determinabilidade, à individualização do conteúdo e intencionalidade/intensão da proteção. Fazendo assim uma divisão tripartida das posições jurídicas substantivas: Direitos Subjetivos, Direitos Limitados e os Interesses Legalmente protegidos.

         4.2.    Conceção Unitária de Direito Subjetivo.
- Posição encabeçada principalmente pela doutrina alemã e, na doutrina portuguesa, pelo Professor Vasco Pereira da Silva.
- De acordo com a teoria da norma de proteção, os diretos dos particulares também podem resultar de normas que estabeleçam deveres da Administração.
- Nos termos desta teoria, o indivíduo será titular de um direito subjetivo quanto à Administração «sempre que, de uma norma jurídica que não visa, apenas a satisfação do interesse público, mas também a proteção dos interesses particulares, resulta uma situação de vantagem objetiva, concedida de forma intencional ou, ainda, quando dela resulte a concessão de um mero benefício de facto, decorrente de um direito fundamental».


- Assim, para a norma ser considerada como atributiva de um direito subjetivo é preciso que haja:
1)      Imperatividade da Norma:
- Administração deve encontrar-se vinculada ao cumprimento desse dever, sendo que o direito do particular só existe na medida de existir vinculação por parte da Administração ao tal dever.
- O conteúdo, mais ou menos amplo, do direito do particular, dependerá da maior ou menor amplitude da vinculação por parte da Administração.

2)      Proteção dos Interesses dos Particulares:
- O dever deverá ser determinado em benefício de pessoas determinadas ou determináveis.  Prossecução do interesse público não chegará, terá de haver simultaneamente a proteção dos interesses dos particulares.
- Como nos Estados de Direito modernos, a prossecução do interesse público e a garantia dos direitos individuas se intersetam, parece ser o entendimento do artigo 266º/1 CRP de que todas a vantagens objetivos e intencionais que a ordem jurídica atribui aos particulares são de considerar como sendo direitos subjetivos.

3)      Poder de Reação Jurisdicional:
Tem de haver garantia quanto à possibilidade de recurso ao tribunal, para a defesa dessa situação individual de vantagens.
- Garantia consagrada na nossa ordem jurídica portuguesa, pelo artigo 268º/3 da CRP.

- O Professor defende, e é esta a base da sua crítica à conceção acima analisada, que entre direitos subjetivos e interesses legítimos não existem diferenças de substância. São a mesma coisa, o que acontece é que podem ter conteúdo diferente.
- Ou seja, ambas são posições substantivas que os particulares possuem relativamente à Administração, concedidas objetiva e intencionalmente por uma noma jurídica cujo objetivo será a satisfação do interesse público e, simultaneamente, dos interesses dos particulares. O direito será o mesmo, mas o conteúdo poderá alterar, devido, como já foi referido, à maior ou menor vinculação por parte da Administração quanto ao cumprimento do dever.
Exemplo: Administração abre um concurso público para o preenchimento de um lugar de professor catedrático.
  • Será comum afirmar-se que os candidatos teriam apenas um interesse legítimo relativamente à Administração, visto que têm apenas o interesse em ser nomeado, não está especificado por lei que eles serão admitidos.
  • De acordo com a opinião defendida pelo Professor Freitas do Amaral, quanto á Administração só haveria a obrigação de respeitar a legalidade, e caso contrário, os interesses poderiam impugnar a decisão da Administração, de forma a remover as ilegalidades que os prejudicam.
  • Porém, o Professor Vasco Pereira da Silva defende que, também aqui temos um direito subjetivo sendo que se verificam as 3 condições da teoria da norma de proteção:

- A primeira condição estará preenchida na medida em que a Administração está sujeita a um conjunto de deveres que a vinculam. Vinculações estas que dependem do conteúdo, mais ou menos amplo, dos direitos dos particulares.
- A segunda condição também se encontra verificada, sendo que o concurso não foi aberto visando apenas o interesse público. Também visa os interesses dos particulares, visto que permite que estes se apresentem a concurso.
- Por fim, a terceira condição também se comprova. Os particulares têm, em caso de violação de normas por parte da Administração, a possibilidade de recurso aos Tribunais, para que estes anulem os atos ilegais e os particulares obterem, então, a satisfação dos seus direitos subjetivos que se encontrassem lesados pela ilegalidade.

- Podemos concluir, que para o Professor, a Constituição equipara, no seu artigo 266º/1, os direitos subjetivos e os interesses legalmente protegidos, conferindo-lhes o estatuto de situações jurídico-materiais dos indivíduos. Logo, não fará sentido existir “direitos subjetivos de primeira categoria” e “direitos subjetivos de segunda categoria”.

5.      Conclusão:
- Longe de ser um tema pacífico na doutrina, parece que a afirmação dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, quanto ao facto de não ser uma distinção que releve muito seja a mais acertada.
- De qualquer forma, tendo que escolher uma posição e sendo que vivemos num Estado de Direito, a posição defendida pelo Professor Regente Vasco Pereira da Silva, parece ser a mais adequada ao não distinguir os conceitos relativamente à proteção, justificando que ambos são merecedores de igual tutela.
- Na nossa opinião, não estando nós num ordenamento jurídico onde a distinção terá grande aplicabilidade, pelo menos ao nível do ordenamento jurídico italiano e aparentando por vezes ser uma discussão quase terminológica, não fará grande sentido esta distinção, pelo menos uma tão acentuada. Sendo certo que os conteúdos dos direitos podem ser variados, parece ser o mais correto afirmar que não deverá haver distinção entre as figuras, conferindo uma maior tutela ao particular quando este teria “apenas” um interesse legalmente protegido ou um interesse difuso.



BIBLIOGRAFIA:
- SILVA, Vasco Pereira da - Em busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina, 1996.
- SILVA, Vasco Pereira da – Para um contencioso administrativo dos particulares, Almedina, 1997.
- SILVA, Vasco Pereira da – O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2009.
- SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de Direito Administrativo Geral – Introdução e Princípios Fundamentais, Tomo I, 5ª Edição, Dom Quixote, 2014.
- AMARAL, Diogo Freitas do – Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3ª Edição, Almedina, 2016.
- ANDRADE, José Carlos Vieira de -  A Justiça Administrativa, Almedina.

Joana Mil-Homens, aluna nº 26157.






[1] Savigny concebia o direito subjetivo como um puro poder da vontade. Jhering, por outro lado, concebia o conceito como a proteção de um interesse conferido pelo Direito.
[2] O professor acha a expressão «interesses legalmente protegidos» - 266º/1 uma expressão pouco feliz, destinada a designar o que na generalidade dos países se chama interesses legítimosPorém, é uma expressão generalizada tanto na doutrina como na lei ordinária (CPA) e também a nível constitucional (266º e 268º).
[3] Exemplos constam no Manual do Prof Paulo Otero (referido na bibliografia).
[4] Para estes autores, o termo interesse legalmente protegido abrange os interesses indiretamente e reflexamente protegidos.

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