Sistemas administrativos

Para conhecermos a noção de acto administrativo, bem como a estruturação da Administração Pública, é de enorme relevância analisar a origem e a evolução do contencioso administrativo.É assim necessário fazer uma viagem de retorno à génese do contencioso administrativo, à Revolução Francesa e à sua interpretação peculiar do princípio da separação de poderes, para compreendermos como nasce a Justiça Administrativa.

Seguimos a linha expositiva adoptada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, pelo que num primeiro momento analisaremos a "ideologia" da separação de poderes da Revolução Francesa entendida à luz de uma noção essencialmente histórica de Estado.

De facto, tal como teria sido preconizado por MAQUIAVEL, num primeiro momento assistimos a um reforço do poder do Estado e do Príncipe, cuja vontade se impõe à medida do gradual desaparecimento das possibilidades de defesa judicial dos particulares relativamente às ofensas do poder. Assim, o Estado é concebido como uma realidade «criada artificialmente pelo Homem para atingir determinados objetivos».
Já num segundo momento, em que o Estado se sente já "forte" para encontrar o Homem, é estabelecida uma organização que reconhece a existência - na esfera de cada Homem - de um núcleo de direitos individuiais insusceptíveis de invasão por parte do Estado, o que corresponde à teorização liberal que encontra a sua expressão nas obras de LOCKE e MONTESQUIEU. Por este motivo, conclui o Professor Vasco Pereira da Silva que o Estado liberal não é mais do que o resultado da conjugação de duas visões antagónicas.

Importa agora perceber o que terá ficado perdido pelo caminho feito desde uma teorização do princípio da separação de poderes baseada na experiência britânica até à sua configuração prática em modelos de organização saídos das revoluções americana e francesa. 
De resto, o que poderá justificar duas experiências históricas tão diferentes que darão origem aos sistemas administrativos "de tipo britânico" e de tipo francês?

Ora, relativamente à forma como o próprio Estado é concebido, é relevante tocarmos desde já num ponto fulcral: é que a própria noção de Estado é completamente desconhecida em Inglaterra. E não é de estranhar que assim seja, uma vez que assistimos a um fenómeno de descentralização que desde cedo conduziu a uma distinção entre a administração central e a administração local, pelo que os vários poderes públicos são encarados como corpos distintos. De igual modo, os tribunais são tidos como entidades autónomas que exprimem "the law of land", direito esse que é obra essencialmente do costume e das decisões judiciais.Já de modo diferente é concebido o Estado e o príncipio da separação de poderes em França. Releva desde já perceber qual a conjuntura histórico-política em que este princípio foi elevado à categoria de dogma liberal e "fonte da criação da justiça administrativa".

De facto, quando o Antigo Regime começou a dar sinais de fraqueza, os tribunais franceses serviram-se dos institutos do direitos de registo para controlar e enfraquecer a actuação do rei, tomando proporções tais que levou mesmo à vulgarização da expressão "governo dos juízes".  Verdadeiros porta-vozes das pretensões da nobreza na luta contra a concentração régia, estes juízes viriam mais tarde a ser olhados com profunda desconfiança pelos revolucionários franceses.
Assim, com a Revolução Francesa e com a chegada de uma nova elite dirigente ao poder, tornou-se indispensável construir um aparelho administrativo disciplinado, obediente e eficaz que em que tudo se coadunava com o fenómeno da centralização administrativa em que os funcionários da Administração central são organizados segundo o princípio da hierarquia (estando as competências dos diversos orgãos escalonadas e encadeadas à semelhança de uma pirâmide). Neste modelo de Administração o poder público surge como um corpo uno, igualmente difundido no centro e na periferia, mas em função das necessidades do centro.De resto, em nome do mesmo princípio da separação de poderes que conduziu a que em Inglaterra o poder judicial se encontrasse autonomizado dos demais - cabendo aos tribunais comuns julgar tanto os litígios entre particulares como entre os particulares e a Administração -, em França o poder judicial deixa de poder interferir no funcionamento da Administração Pública ficando limitado aos conflitos inter-privados.

Assim se percebe o porquê de o Professor Vasco Pereira da Silva se referir a esta concepção que prevaleceu em França como uma "fachada júridica". Uma vez que a criação de um contencioso privativo da Administração nada tem que ver com o princípio da separação de poderes, julgar é sempre julgar e nada pode ter a ver com administrar.
«O pecado original do contencioso administrativo foi o de ter nascido como um contencioso "privativo" da Administração». (SILVA, 1995, p. 28)
A estreita ligação da Administração à Justiça, como refere o Professor, foi assumindo diferentes configurações levando a que o contencioso administrativo se vá desvinculando dos orgãos fiscalizadores. Podemos assim dividir o sistema do administrador-juíz em três subperíodos:

Numa primeira fase (entre 1789 e 1799) o julgamento dos litígios administrativos era remetido para os próprios orgãos da Administração activa, não havendo qualquer distinção entre o contencioso da Administração e a própria Administração. A gravidade e implicações que este sistema veio a ter podem ser ilustradas por um típico provérbio português: «ninguém é bom juíz em causa própria».

A segunda configuração assumida pelo sistema do administrador-juíz é a da "justiça-reservada". Tendo sido criado o Conselho de Estado deixam de ser os orgãos decisores da Administração a resolver os litígios com os particulares, ainda que essa decisão ainda coubesse a orgãos administrativos e os pareceres emitidos na constância das suas funções carecessem de homologação do Chefe de Estado.

Numa última fase, o sistema do administrador passa para a fase da justiça delegada.

De facto, o espaço de autonomia que o Conselho de Estado veio conquistando, em virtude do bom-senso das suas consultas, levou a que fosse finalmente delegada aos orgãos consultivos a competência de decidir os litígios administrativos.

Para o Professor Diogo Freitas do Amaral foi esta fase que veio a instaurar finalmente o sistema dos tribunais administrativos. Ficaria assim consolidada a visão de que os orgãos e agentes administrativos não estão no mesmo plano que os particulares, exercendo funções de interesse público que justificariam também a detenção por parte da Administração de poderes especiais de autoridade.O Professor Vasco Pereira da Silva reconhece importância a esta transformação, mas considera que esta não levaria ainda ao verdadeiro corte umbilical existente entre Administração e Justiça administrativa. Na perspectiva do Professor, o milagre da Justiça administrativa reside no facto de uma instituição que nasce com o intuito de proteger a Administração do controlo dos tribunais se vir a tornar num verdadeiro tribunal, cujo fim é o de defender os direitos dos particulares. 

Como nasce então o Direito Administrativo?

Ele consagra-se através de um acordão. Em causa estava um episódio de responsabilidade civil em que a Administração Pública é chamada a responder pelos danos causados a uma criança de 5 anos. No caso, contudo, não se aplicariam de ânimo leve os princípios estabelecidos no Código civil; atendendo à especialidade das regras aplicáveis aos serviços públicos fica assim reconhecida pela primeira vez a necessidade de se criar uma ramo de Direito diferente dos demais.

Assim se inicia um processo de transformação gradual e continuado dos orgãos de controlo da Administração em tribunais administrativos. Contudo, é-nos impossível falar de um momento único em que se dá a jurisdicionalização do contencioso administrativo, só desaparecendo o "pecado original" do Direito Administrativo com o alvorecer do Estado social. 

De facto, só mais tarde, quando a Administração vier a chamar a si a responsabilidade de promover o bem-estar dos particulares quando presta bens e serviços, é que também se alterará a posição do indivíduo em relação à Administração, tornando-se a dependência do cidadão face a Administração mais "intensa, duradoura e abrangente".


Bibliografia: 
- AMARAL, Diogo Freitas do (2015)  Curso de Direito Administrativo 4ª Edição, Almedina;
- SILVA, Vasco Pereira da (1995) Em busca do Acto Administrativo Perdido, 1ª edição, Almedina;

Maria MendonçaNº de aluna: 56755

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