Cumprimento da ordem ou cumprimento da Lei?

Segundo Freitas do Amaral, a hierarquia é o modelo de organização administrativa vertical, constituído por dois ou mais órgãos e agentes com atribuições comuns, ligados por um vínculo jurídico que confere ao superior o poder de direção e impõe ao subalterno o dever de obediência.

Esta hierarquia administrativa traduz-se num vínculo especial de supremacia e subordinação que se estabelece entre o superior e o subalterno: os poderes do superior hierárquico em conjunto com os deveres e sujeições a que o subalterno se encontra adstrito, formam o conteúdo da relação hierárquica.

O dever de obediência considera-se o principal dever típico da relação hierárquica, estando consagrada no artigo 73º nº8 da LGTFP, que dispõe: “O dever de obediência consiste em acatar e cumprir as ordens dos legítimos superiores hierárquicos, dadas em objeto de serviço e com a forma legal”. Com tal enunciação, é possível apurar os seguintes requisitos cumulativos para se poder falar em dever de obediência:

- A instrução ou ordem deverá ser proveniente de um legítimo superior hierárquico do subalterno em questão;

- A instrução ou ordem deverá ser dada em matéria de serviço;

- A instrução ou ordem deverá revestir a forma legalmente prevista.

Existindo algum vício face a tais requisitos, a ordem tornar-se-á extrinsecamente ilegal, pelo que o subalterno não terá a obrigação de obedecer àquilo que lhe for irregular ou indevidamente determinado.

Por outro lado, coloca-se a questão de saber se a ordem conferida for intrinsecamente ilegal (a sua prática pelo subalterno consistir num ato ilícito ou ilegal) o subalterno terá ou não a obrigação de a acatar. Tal questão leva a alguma divergência doutrinária:

- Para a corrente hierárquica, o subalterno deverá sempre acatar as ordens superiores, não tendo o direito de interpretar ou questionar a legalidade das suas determinações. No limite, em caso de fundadas dúvidas quanto à legalidade, poderá o subalterno exercer o direito de respeitosa representação, expondo as suas dúvidas ao superior hierárquico. No entanto, se este confirmar a ordem, o subalterno deverá cumpri-la.

 - Por outro lado, para a corrente legalista, não existe dever de obediência quando as ordens sejam julgadas ilegais. Numa formulação ampliativa, defende-se que a lei está acima do superior e como tal, qualquer que seja a ilegalidade em causa, não é devida obediência;

- Numa opinião intermédia, o dever de obediência cessa se a ordem for patente ou inequivocamente ilegal, por ser contrária à letra ou ao espírito da lei;

- Numa visão mais restritiva, o subalterno não terá o dever de obedecer apenas em caso de a ordem implicar a prática de um ato criminoso.

É visível o contraste entre o regime atual e o que vigorava antes do 25 de Abril: assistiu-se a uma substituição do sistema hierárquico pelo sistema legalista. Assim, prevalece hoje o sistema legalista mitigado, sendo resultado do artigo 271º nº2 e nº3 da CRP e do artigo177º nº2 e nº5 da LGTFP.

Segundo o entendimento de Freitas do Amaral, é correto predominar o sistema tal como hoje é entendido. Tal consideração deriva do princípio do Estado de Direito democrático e da submissão da Administração Pública à lei – artigo 266º nº2 da CRP. Afirma o mesmo autor que “o dever de obediência a ordens ilegais é, na verdade, uma exceção ao princípio da legalidade, mas é uma exceção que é legitimada pela própria Constituição” – estando Paulo Otero em desacordo com tal afirmação que entende “resultar da própria lei ser legal o cumprimento de uma ordem ilegal”, não havendo, portanto, uma exceção a tal princípio.

AMARAL, Diogo Freitas do -  Curso de Direito Administrativo, volume I, 4.ª edição, Almedina, 2015.
OTERO, Paulo - Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, Coimbra Editora, 1992.


Sónia Duarte, nº 57315

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