Da execução prévia no Direito Administrativo

Os sistemas políticos e os sistemas judiciais variam em função do tempo e do espaço. A estruturação da Administração Pública não é a mesma em todas as épocas e em todos os países. Adianta FREITAS DO AMARAL que “ a tipificação desses diferentes modos jurídicos de estruturação dá lugar ao estudo dos sistemas adminstrativos”[1].
            Até às revoluções liberais, vigora pois o sistema administrativo tradicional[2]. Depois das revoluções liberais, estabelecem-se os sistemas administrativos modernos, baseados na separação de poderes e no Estado de Direito[3].
            O Estado democrático e liberal apresentava, pois, uma “costela” autoritária, ao lado de uma “costela” liberal, o que permite explicar a relação de continuidade existente entre o Estado Absoluto e o Estado liberal como explica VASCO PEREIRA DA SILVA[4]. Neste sentido, o Direito Administrativo será “ o ponto de convergência das técnicas de acção absolutistas com as exigências de liberdade e garantia que a grande revolução traz”[5]. O Estado Liberal é, na expressão de SANTAMARIA PASTOR, «um autêntico herdeiro«» do monarca absoluto[6].
            Neste pano de fundo, a evolução política diversificada explica dois sistemas admistrativos diferentes[7]. O sistema de tipo britânico, ou de administração judiciária, e o sistema de tipo francês, ou de administração executiva[8]. A diferença essencial reside, na visão de VASCO PEREIRA DA SILVA, “ no facto da Inglaterra desconhecer a noção de Estado que, pelo contrário, assume uma importância decisiva na caracterização do sistema francês”[9]. Explica CASSESE, referindo-se aos países anglo-saxónicos que, as “ escolas jurídicas nacionais não tiveram de desenvolver uma teoria do Estado e muito menos de referir a ele todos os poderes públicos”[10].
Ainda numa tentativa de diferenciar os dois sistemas acrecentam GARCÍA DE ENTERRÍA/ FERNÁNDEZ, que “ a própria palavra Estado é estranha ao sistema inglês, quanto mais o conceito. Em vez deste encontramos o de Coroa, que se refere a toda a organização administrativa”[11].
            Apesar da caracterização de ambos os sistemas administrativos remeter para o conceito de acto administrativo[12], interessa agora analisar uma das características[13] centrais do sistema administrativo de matriz francesa ou de administração executiva: o privilégio da execução prévia. Ora, para estes efeitos, torna-se imperativo uma breve referência à execução das decisões administrativas no sistema de tipo britânico. Sumariamente, no sistema administrativo de tipo britânico a Administração Pública não pode executar as suas decisões por autoridade própria. Se um órgão central ou local da Administração toma uma decisão desfavorável ao particular (e.g. expulsão), e se o particular não a acata voluntariamente, esse órgão não poderá por si só empregar meios coactivos (e.g. polícia) para impor o respeito da sua decisão, tendo que obter uma sentença que torne imperativa a decisão pelo tribunal comum segundo o due process of law. Conclui, FREITAS DO AMARAL, “as decisões unilaterais da Administração não têm em princípio força executória própria, não podendo por isso ser impostas pela coacção sem uma prévia intervenção do poder judicial”[14].
            Em sentido contrário, apresenta-se o privilégio da execução prévia no sistema administrativo de matriz francesa. Em contraposição com o sistema inglês, na realidade francesa pressupunha-se a existência de um sistema de administração executiva, construído a partir da decisão unilateral como forma típica de manifestação da autoridade administrativa.  Por isso se afirmava que o contencioso administrativo por natureza haveria de ser o da impugnação de actos administrativos. Neste sentido, pronunciou-se VIEIRA DE ANDRADE, que preconiza alguns aspectos característicos associados à construção “actocêntrica” da justica administrativa. Em duas coordenadas distintas aponta VIEIRA DE ANDRADE. Em primeiro lugar, “ o acto recorrível era apenas o acto administrativo definitivo e executório, enquanto decisão unilateral que constituía a última palavra da Administração externamente relevante num caso concreto- excluíam-se da impugnação judicial autónoma os actos que servissem apenas para preparar, executar ou confirmar as decisões tomadas por órgãos subalternos.[15]” Noutro prisma, acrecenta o mesmo, “a partir da ideia de autoridade, admitia-se uma presunção de legalidade dos actos, desde que não lhes faltassem os elementos essenciais( desde que não fossem nulos ou inexistentes)”[16]. Por isso, “a impugnação judicial do acto não tolheria a sua eficácia e obrigatoriedade, salvo se houvesse uma decisão de suspensão ad hoc pelo tribunal, que nunca poderia ser concedida quando causasse grave prejuízo para o interesse público.[17]
            O Direito Administrativo confere, pois, à Administração Pública um conjunto de poderes “exorbitantes”[18] sobre os cidadãos, por comparação com os poderes “normais” reconhecidos pelo direito civil aos particulares nas suas relações entre si. No sistema francês um desses poderes exorbitantes é o supra mencionado «privilégio da execução prévia»( privilège du préalable e privilège de l´exécution d´office), que permite à Administração executar as suas decisões por autoridade própria. Ora, nestes termos, quando um órgão central ou local da Administração francesa toma uma decisão desfavorável a um particular ( de novo tomamos como exemplo a situação de expulsão), e se ele não a acata voluntariamente, esse órgão pode por si só empregar meios coactivos, inclusive a polícia, para impor o respeito pela sua decisão, e pode fazê-lo sem ter de recorrer a tribunal para o efeito. Concretiza de modo simplificado e muito ilustrativo, para explicar este privilégio da execução prévia, Romieu em 1902, comissário do Governo junto do Conseil d´État, « quand la maison brûle, on ne va pas demander au juge l´autorisation d´y envoyer les pompieres»[19]. Em suma, conclui FREITAS DO AMARAL, que “as decisões unilaterais da Administração Pública têm em regra força executória própria, e podem por isso mesmo ser impostas pela coacção aos particulares, sem necessidade de qualquer intervenção prévia do poder judicial”[20].
            Em conclusão as observações feitas permitem perceber que a sociedade francesa viveu uma Revolução de ruptura com o Estado Absoluto, centralizadora e criadora de uma Administração Pública, instrumento da mudança, que se quis mais imune ao papel tido por conservador dos tribunais, o que adicionado à fraqueza da sociedade civil, conduziu a um sistema de administração executiva. Em síntese, este sistema tem como característica fundamental a atribuição à Administração Pública de poderes “exorbitantes”, e conclui MARCELO REBELO DE SOUSA, “de um estatuto de supremacia sobre os cidadãos e suas organizações, que envolve não só o poder de definir unilateralmente o Direito nas relações com os particulares, como o poder de executar coercivamente essa definição, não restando àqueles senão a hipótese de impugnação a posteriori da decisão já executada; a Administração Pública goza, assim, do poder de decidir unilateralmente com força executória e proceder à correspondente execução sem intervenção jurisdicional”[21].

João Santiago Neves
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[1] Vide. DIOGO FREITAS DO AMARAL, «Curso de Direito Administrativo», Vol.I, 4ªedição, Almedina, 2015, p.87.
[2] O Sistema administrativo da Monarquia tradicional europeia que assentava, conforme ilustra o Prof. Freitas do Amaral, por um lado, na “ indiferenciação das funções administrativa e jurisdicional e , consequentemente, inexistência de uma separação rigorosa entre os órgãos do poder executivo e do poder judicial” e na “ não subordinação da Administração Pública ao princípio da legalidade e, consequentemente, insuficiência do sistema de garantias jurídicas dos particulares face à administração”.(Cfr. Curso.., p.88)
[3] Cfr. ENTRENA CUESTA,« Curso de Derecho Administrativo», Vol.I, Madrid, 1986, p.46 e ss.
[4] Vide. VASCO PEREIRA DA SILVA, «Em Busca do Acto Administrativo Perdido», Almedina, 2003, p.16
[5] Vide. SANTAMARIA PASTOR, «Fundamentos de Derecho Administrativo», Editorial Centro de Estudios Ramon Areces, S.A., 1991, p.16.
[6] ibidem
[7] Vide. MARCELO REBELO DE SOUSA, « Lições de Direito Administrativo I», Lisboa, 1994/95, p.33.
[8] Esta qualificação deve-se a MAURICE HAURIOU, « Précis de Droit Administratif et de Droit Public», 11.ª ed., Paris, 1927, p.2
[9] Vide. VASCO PEREIRA DA SILVA, «Em Busca do Acto Administrativo Perdido», cit., p.17.
[10] SABINO CASSESE, « Le Trasformazioni dell´Organizzazione Amministrativa», in «Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico», nº2, 1985, p.337.
[11] EDUARDO GARCÍA DE  ENTERRRÍA/ TOMÁS-RAMÓN FRENÁNDEZ, «Curso de Derecho Administrativo», Vol. I, 6ª edição, Civitas, Madrid, 1993, p.29.
[12] Neste sentido, cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, «Em Busca do Acto Administrativo Perdido», cit., p.38 e ss;  também SANTAMARIA PASTOR, «Fundamentos de Derecho Administrativo», cit., p.147 e ss.
[13] Importa fazer referência a um elenco vasto de traços específicos que caracterizam profundamente os dois sistemas mas que não se revelam centrais para discussão, atendendo ao propósito do trabalho. Nomeadamente atende-se à organização administrativa, ao controlo jurisdicional da Administração, ao direito regulador da Administração e ao sistema de garantias jurídicas dos particulares.
Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, «Curso de Direito Administrativo», cit., p.90-100
[14] Vide. DIOGO FREITAS DO AMARAL, «Curso de Direito Administrativo», cit., p.92; V. MARCELLO CAETANO, «Manual de Ciência Política», Vol.I, p.21
[15] Vide. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, « O Novo Modelo de Impugnação Judicial dos Actos Administrativos», in Colóquio Luso-Espanhol, « O Acto no Contencioso Administrativo- Tradição e Reforma», COLAÇO ANTUNES E SÁINZ MORENO, Almedina, 2005, p. 190
[16] ibidem
[17] ibidem
[18] A tradicional distinção, nos países da família romano-germâncica, entre direito público e direito privado permitiu facilmente o nascimento de um novo ramo do direito público, ao tempo defenido em função dos pouvoirs exorbitants que conferia à Administração Pública.
Cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, «Curso de Direito Administrativo», cit., p.96-97.
[19] PROSPER WEIL, «Le Droit Administratif», 4.ªed., Paris, 1971, p.45.
[20] Vide. DIOGO FREITAS DO AMARAL, «Curso de Direito Administrativo», cit., p.97-98.
[21] Vide. MARCELO REBELO DE SOUSA, « Lições de Direito Administrativo I», cit., p.35.

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