Da Questão da Reserva de Administração


A questão em torno da existência de uma reserva de administração é a de saber se existe uma área do exercício da função administrativa que seja impenetrável face à acção da função legislativa[1] ou da função política em sentido estrito[2]. A existência desta reserva daria à função administrativa um papel muito mais relevante do que aquele que lhe tem sido reservada por visões que a interpretam como uma mera função secundária, constituindo, por isso, mais uma crítica a visão quadripartida das funções do Estado.
O surgimento da questão em torno da reserva de administração está intimamente ligada à passagem para o estado de direito social e democrático. Por um lado, o estado social deu origem a leis que não tinha uma estrutura geral e abstrata o que forçou os autores do direito constitucional a refletir sobre o quão específica poderia esta ser na ausência de uma definição material oferecida pela constituição. A questão da reserva de Administração acabou necessariamente por se entrecruzar neste debate por ser defendido como limite material da lei. Em segundo lugar, a passagem para o estado social acabou com a visão da administração como poder subalterno dos teres poderes tradicionais. Esta visão da administração começou a ser fundamentada na doutrina Alemã, entre os anos 50 e 70, por Hans Peters e foi sendo exportada para outros países europeus acabando por acolher apoio em Portugal[3]. A revalorização da Administração obrigou necessariamente a ponderar a hipótese de esta usufruir de um núcleo impenetrável pela administração, isto é de uma reserva de administração. A valorização da administração pública encontraria o fundamento para a reserva de administração no princípio da divisão de poderes e implicaria que se abandonasse a visão oitocentista que vê o poder legislativo como o coração do corpo social e político reduzindo o poder executivo ao corpo que executa a vontade do coração.
A propósito desta nota histórica é-me possível apresentar, desde já um contra-argumento às críticas apresentadas à ideia de reserva de administração. No decorrer das aulas que lecionou no 1º semestre deste ano letivo, o Professor Vasco Pereira da Silva defendeu a posição que a ideia de reserva de administração implica um regresso a visão da administração como algo que é propriedade de si própria não estando sujeita a ação de outros poderes. O tema está indubitavelmente ligado as reflexões feitas pelo jurista na sua tese de doutoramento em relação a decisão dos revolucionários franceses de criar tribunais próprios incorporados na administração para julgar a própria administração. Na realidade a visão de que o poder legislativo se pode ingerir na administração revela-se algo que pode implicar um regresso a uma visão das funções do estado semelhante à que foi postulada pelos regimes de governo representativo do século XIX, em que o parlamento disponha de um poder praticamente ilimitado.
Tradicionalmente existem três argumentos que são avançados contra a existência de uma reserva de administração, a saber[4]: em primeiro lugar, a reserva de administração coloca em causa o princípio da legalidade ao não permitir a vinculação da administração a lei, por outro lado, a consagração do princípio da legitimidade democrática implica que os órgãos legislativos eleitos sejam capazes de se ingerir no domínio dos órgãos da administração não eleitos. Por último, a ideia de reserva de administração mostra-se um conceito de difícil consubstanciação no sentido de que não seria possível definir aquilo a que corresponde exatamente o núcleo impenetrável da administração, dada a própria diversidade qua a administração tem assumido. A minha apresentação da reserva de administração passará por rebater estas críticas ao mesmo tempo que reforço a ideia de que o papel da administração no estado social implica que se abandone a visão de uma administração subalterna.
A refutação da crítica baseada no princípio da legalidade pode ser feita nos seguintes termos: a administração só se pode encontrar vinculada pela lei dentro do quão amplo se permita que a lei seja. Se se reconhecer a existência de uma reserva de administração que delimite de forma mais rigorosa o quão ampla a lei pode ser o princípio da legalidade terá de ser readaptado a luz desta realidade. Ao colocarem a questão do princípio da legalidade antes de se preguntarem sobre o quão ampla deve ser a lei os detratores da ideia de reserva de administração estão a inverter o ónus da questão.
No que se refere ao princípio da legitimidade democrática, segundo o qual os órgãos eleitos por sufrágio universal têm uma legitimidade democrática acrescida de que carecem os órgãos da administração e que permitiria aos primeiros controlar os segundos, também não segue. O regime de democracia representativa é uma síntese de vários princípios dentro dos quais poderíamos destacar o princípio da legalidade o princípio da divisão de poderes e o princípio democrático. O argumento dos detratores da reserva da administração faz um exercício pouco claro ao tornar o princípio da legitimidade democrático em algo superior a todos os outros princípios que compõem um regime de democracia representativa e incapaz de ceder perante outras realidades igualmente importantes. Todo isto é feito sem que se apresente uma razão verdadeiramente convincente para sustentar esta posição.
Há, por último, a crítica em relação a dificuldade em definir o conteúdo de uma eventual reserva de administração o que tornaria todo a figura supérflua. A melhor resposta a esta crítica pode ser encontrada no texto do Professor Jorge Reis Novais sobre o tema[5]. O Professor debruçou-se sobre a questão no sentido de defender a existência de uma reserva de administração do governo, enquanto órgão da administração. Não parece no entanto haver nenhum inconveniente em ampliar as suas conclusões de forma a defender a existência de uma reserva de administração como um todo. Deixemos, portanto, que sejam as palavras do jurista a responder as críticas dos que negam a existência de um núcleo essencial da administração: “Assim é necessário encontrar critérios que permitam decidir quando, em cada caso concreto o âmbito nuclear do Poder executivo que decorre do princípio constitucional da divisão de poderes está ou não a ser afetado. De acordo com a posição que defendemos (…) a solução que defendemos pode ser orientada pelo seguinte critério: há violação daquele conteúdo essencial sempre quando, por força de determinação parlamentar, o Governo é pontualmente delegado ao nível de um órgão subordinado que recebe ordens ou instruções vinculativas (…).”[6] Tal como já se disse, não parece existir um inconveniente em dizer-se que este princípio é aplicável à reserva de administração como um todo. Haveria uma violação da reserva de administração sempre que a administração recebesse ordens ou instruções vinculantes dos órgãos do poder legislativo.
Se olharmos para as críticas às formulações dos detratores da divisão de poderes à luz das considerações sobre a revalorização da administração em consonância com a ideia de divisão de poderes, a conclusão a que se chega é o reconhecimento de uma reserva de administração como área impenetrável do exercício da função administrativa.

Bernardo de Freitas
(aluno n.º 56732)






                                             



[1] O tema da reserva de administração e dos limites da legislação tem uma origem política e começou a ser elaborado pela doutrina nos anos 80. O primeiro texto relevante sobre o tema foi redigido pelo professor Marcelo Rebelo de Sousa, tendo sido mais tarde exposto pelo professor Nuno Piçarra e pelo Professor Bernardo Diniz Ayola.
[2]Ao referir a existência de uma função legislativa e de uma função política em sentido estrito estou a adotar a posição tripartida, no que concerne a organização das funções do estado coletividade circunscritas no seu exercício pela constituição
[3] Novais, Jorge Reis, Separação de Poderes e Limites da Competência Legislativa da Competência Legislativa da Assembleia da República, Lisboa, Editora Lex, 1997, pp. 49.
[4] A listagem das críticas pode ser encontrada em: Ayala Bernardo, O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa, Editora Lex, Lisboa, 1995 pp.54 e 55.
[5] Novais, Jorge Reis, Separação de Poderes e Limites da Competência Legislativa da Competência Legislativa da Assembleia da República, Lisboa, Editora Lex, 1997.
[6] Ibidem pp. 61

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