Princípio da Legalidade

  1. Noções elementares
Consiste este princípio numa subordinação da atuação dos poderes públicos à lei, de entre os quais releva a administração pública, firmando-se assim como um dos pilares fundamentais do Estado de Direito, decorrendo dos arts. 266º/2 CRP e 3º CPA.

Essa subordinação jurídica é composta por duas vertentes: a preferência de lei, que impede a violação do direito vigente pela administração pública, e tal ocorrendo implica a invalidade do ato administrativo conflituante; e a reserva de lei, que exige uma atuação administrativa assente numa determinada norma jurídica, projetando-se por sua vez em duas dimensões, sendo que na primeira é imperativo a necessidade dessa mesma atuação fundamentar-se numa norma (precedência de lei) e na segunda, a necessidade dessa norma, ou fundamento jurídico-normativo, ser dotado de um grau de pormenorização tal que permita antecipar razoavelmente a atuação administrativa em causa (reserva de densificação normativa).
     
     2. A preferência de lei

Alicerçando a preferência de lei nos arts. 266º/2 CRP e 3º CPA, a interpretação destes permite extrapolar que os mesmos devem ser entendidos num sentido negativo, isto é, são proibidas atuações administrativas contrárias à lei, e verificando-se essa situação, esta última irá naturalmente prevalecer sobre o ato da administração. No entanto, deve ser entendido por lei, não o ato emanado da AR mas sim, de uma forma lata, toda a norma jurídica existente no nosso ordenamento, como as normas constitucionais, a lei ordinária (art. 112º/1 CRP), regulamentos administrativos e até o próprio costume, independentemente da sua extensão ser local ou internacional, agrupando-se então todos os mencionados no conceito bloco de legalidade. Atentando ainda quanto a este último, o prof. Marcelo Rebelo de Sousa discorda da inclusão, neste grupo, de atos não normativos, como por exemplo os contratos administrativos, isto porque o seu conteúdo pode ser modificado mediante outros atos jurídicos administrativos, não me parecendo esta justificação suficiente para derrogá-los do bloco de legalidade pois, apesar de facilmente poderem ser revogados ou alterados, enquanto vigorarem na nossa ordem jurídica, a administração pública deverá empregar as medidas adequadas para respeitá-los e permitir que atinjam o alcance desejado quando surgiram. Assim sendo, os contratos administrativos e os atos administrativos constitutivos de direitos integram também este mesmo bloco, impondo desta forma, uma subordinação da administração aos mesmos.

Por sua vez, a preferência de lei acarreta duas consequências: a primeira, já referida, implica a ilegalidade (e consequente invalidade) do ato administrativo contrário ao bloco de legalidade (impõe-se não só em ações mas sim também nas omissões, isto é, nos casos em que a lei impõe uma determinada atuação por parte do poder público que não se verifica); e a segunda, a capacidade dos mecanismos criados pela ordem jurídica poderem erradicar da mesma os tais atos ilegais, como também o suprimento das omissões ilícitas, impondo assim à administração um dever de eliminação das ilegalidades por si cometidas.

Surge ainda, por fim, a seguinte questão: e se a administração for confrontada com normas conflituantes no interior do bloco de legalidade?. Não será naturalmente difícil para qualquer jurista (ou até para um mero aprendiz) perceber que a norma de fonte hierarquicamente superior deverá prevalecer. No entanto, a dúvida instala-se quando se pretende saber quem é que deverá possuir a legitimidade para desaplicá-la, e aí surgem três entendimentos: competência de desaplicação limitada ou excecional (defendida pela doutrina maioritária), a qual preconiza a capacidade da administração para erradicar da ordem jurídica uma norma inconstitucional mediante a observância de certos critérios, como por exemplo, o "previsível grau de insegurança jurídica causado por uma eventual desaplicação administrativa da lei" (Marcelo Rebelo de Sousa) e a gravidade da inconstitucionalidade; a total rejeição da competência de desaplicação, entregando assim apenas aos Tribunais o poder de derrogar do universo jurídico normas conflituantes, sendo sustentada por uma parte minoritária da doutrina, parecendo-me no entanto, a mais plausível e razoável (uma vez que o próprio poder jurisdicional e a sua competência de fiscalização administrativa deverão ser tidos como fixos e indelegáveis); e finalmente, sem repercussão na nossa doutrina, a tese da competência irrestrita de desaplicação, não merecendo maior desenvolvimento pelo seu nome revelar facilmente o núcleo duro desta conceção.

      3. A reserva de lei

A reserva de lei é suportada por dois fundamentos, que nasceram e cresceram no Estado liberal e atualmente mantêm a sua relevância: o fundamento democrático da reserva de lei, por outras palavras, a legitimidade de que são dotados os órgãos do Estado emanantes de atos jurídicos sustenta-se no facto da mesma lhes ter sido concedida pelo povo, através do sufrágio universal direto, submetendo-se assim à vontade popular; e o fundamento garantístico da reserva de lei, que procura assegurar a previsibilidade das atuações da administração, através da existência de uma norma jurídica habilitante, devidamente publicitada (reserva de norma jurídica). Desta maneira, e sumariamente, estes fundamentos correspondem, respetivamente, à submissão da função administrativa à vontade popular e a garantia de previsibilidade das atuações dos poderes públicos.

Surge agora a dúvida: a reserva de lei deverá restringir-se às matérias de administração agressiva ou de administração constitutiva? Antes de prosseguir releva distinguir estas duas. A primeira consiste numa atuação autoritária, isto é, a possibilidade do poder público sacrificar interesses e direitos dos particulares; enquanto a segunda assenta numa atuação benéfica para os particulares, designadamente, através da garantia e prestação de serviços sociais, escolares, hospitalares, entre outros. Realizada a distinção, surgem então três entendimentos relativamente às situações em que a administração deverá obedecer à reserva de lei. O primeiro, sustentado em Portugal pelo prof. Paulo Otero, e a meu ver, mais razoável e coerente, defende a restrição da reserva de lei somente à administração agressiva, significando isto que somente nas atuações suscetíveis de lesar interesses particulares essa mesma medida deverá fundamentar-se numa norma jurídica, sob pena de para além dos interesses violar-se gravemente as expetativas dos cidadãos, não fazendo sentido alegar o fundamento garantístico quando o assunto em questão compreende a atribuição de vantagens aos cidadãos, pecando por excesso de burocratização e culminando num processo debilitado e lento se tal for exigível à administração. Por outro lado, surge a teoria da essencialidade, defendida maioritariamente na Alemanha e preconizada cá pelo prof. Rogério Soares, em que, resumidamente, a atuação deverá submeter-se à reserva de lei nas matérias tidas como essenciais aos olhos da conceção social dominante, como por exemplo, temas sociais, económicos, políticos e por aí adiante. Finalmente, e sustentada maioritariamente em Portugal, nomeadamente pelo prof. Blanco de Morais, defende a aplicação da reserva de lei tanto aos casos da administração prestadora de serviços (ou constitutiva) como àquela que sacrifica os interesses particulares (ou agressiva), baseando-se numa interpretação sobejamente literária do art. 266º/2 CRP, através do qual não me parece possível extrapolar o fundamento deste entendimento.

Por fim, quanto à reserva de densificação normativa, isto é, o grau de pormenorização dos pressupostos e dos meios empregues pela administração de modo a consumar uma determinada atuação, a mesma deverá possuir o grau necessário de densidade sob pena de inconstitucionalidade, por violação óbvia do princípio da reserva de lei. Essa mesma densificação não é fixa ou objetiva, carecendo de averiguação do caso concreto. Quanto à administração agressiva, naturalmente que este grau de pormenorização deverá ser maior e mais apertado, ao contrário do que sucede com a administração prestacional, por razões lógicas. Se uma norma densificar totalmente os pressupostos e meios de atuação administrativa, a mesma será tida como fechada, vinculando a administração a uma conduta ou omissão completamente determinada; se os pormenorizar parcialmente será considerada como norma aberta, que predeterminando somente alguns aspetos da conduta administrativa, confere a esta última uma margem de livre decisão, isto é, um espaço de liberdade de atuação conferido por lei e limitado pelo bloco de legalidade.


Bibliografia:
- Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral (tomo I)
- Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo (vol. II)

Realizado por:
- Gonçalo Mimoso, 2º ano (turma B, subturma 11)

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