A Administração conhece razões, que a lei desconhece


Sabemos que a Administração está subordinada à lei, pelo princípio da legalidade. Encontramos essa previsão no artº 266 da Constituição da República Portuguesa, no seu nº2, mas o Código do Procedimento Administrativo confere a este princípio primazia sobre os demais, dispondo sobre o mesmo logo no artº 3: “ Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respectivos fins.”
Para percebemos a que atendemos quando falamos de discricionariedade, é indispensável conhecer o princípio da legalidade que rege a atuação da Administração Pública, ou nas palavras de FREITAS DO AMARAL, « a Administração pública tem de prosseguir o interesse público em obediência à lei: é o que se chama princípio da legalidade»[1]. De facto, é no âmbito da subordinação à lei, que surge a discricionariedade associada à actuação administrativa. Isto é, os actos praticados pela Administração não são regulados pela lei do mesmo modo. Neste sentido, « o bloco de legalidade pode vincular em absoluto a conduta da Administração Pública ou deixar a esta zonas de livre escolha ou de discricionariedade»[2], nas palavras de MARCELO REBELO DE SOUSA. Num outro sentido, parece apontar FREITAS DO AMARAL, quando distingue atos vinculados e atos discricionários, sendo por isto a vinculação e a discricionariedade, nas palavras do autor, « as duas formas típicas pelas quais a lei modela a atividade da Administração Pública»[3].
Em consequência, a discricionariedade, poderia ser entendida como um espaço de liberdade conferido à Administração, ou em sentido mais amplo, uma margem de livre decisão. A questão prende-se, contudo, no sentido amplo que é dado à discricionariedade nesta visão de “liberdade administrativa”, e em consequência o sentido redutor atribuído ao princípio da legalidade. Por isto, a questão que urge é esta: É o princípio da discricionariedade uma consequência do princípio da legalidade, ou está este à margem do sentido norteador da actividade administrativa que é conferido à legalidade?. Em tom coloquial, mas apropriado ao âmbito da discussão: A Administração é, afinal de contas, livre ou não?
Ora, a resposta é controvertida, mas definidos os termos da discussão, temos agora espaço para aprofundar na temática da discricionariedade. Em primeiro lugar, é necessário perspectivar a discricionariedade na atividade administrativa. Em consequência, podemos adotar duas perspectivas diferentes: a dos poderes ou a dos actos. Aliás, esta dicotomia conduz também a duas visões do problema: a teoria da organização e a teoria da actividade, fazendo uso das perspectivas preconizadas por FREITAS DO AMARAL. Já que, nas palavras do autor: « se nos colocarmos na perspectiva da organização, analisaremos os poderes; se nos colocarmos na perspectiva da actividade, analisaremos os actos»[4].
 Independentemente, da perspectiva que adotarmos, há para FREITAS DO AMARAL uma verdadeira separação da legalidade e da discricionariedade. Contudo, esta separação não é total. Em bom rigor, adianta o autor: «(...) em relação aos atos da Administração não faz grande sentido perguntar, em concreto, se são vinculados ou discricionários. O que faz sentido é indagar em que medida são vinculados e em que medida são discricionários»[5].
Embora no plano dos actos, o autor parece incluir a discricionariedade no plano da legalidade. Por isso, refere mais adiante, após estabelecer um critério de predominância à classificação de atos vinculados ou discricionários, que « para haver discricionariedade é necessário que a lei atribua à Administração o poder de escolha entre várias alternativas diferentes de decisão(...)»[6].
Por conseguinte, parece ser de concluir que as escolhas da Administração resultam dos ditames da lei. Mas de novo, poderíamos perguntar: a escolha é livre? Isto é, não há dúvidas que há uma margem de decisão que cabe à Administração, mas se a lei apresenta várias escolhas que é o que resulta imediatamente da margem de livre de decisão, a actuação da Administração perante esse leque vasto, também resulta da lei? E se sim, o fim da lei está expresso nessa escolha, ou esse fim remonta apenas às várias soluções?
No sentido referido acima, AFONSO QUEIRÓ considera que é nessa escolha livre das várias soluções conformes à lei, que reside a natureza da discricionariedade. Já que, «o poder discricionário (...) consiste (...) numa outorga de liberdade, feita pelo legislador à Administração, numa intencional concessão do poder de escolha, ante a qual se legitimam, como igualmente legais, igualmente corretas de lege lata, todas as decisões que couberem dentro da série, mais ou menos ampla, daquelas entre as quais a liberdade de ação administrativa foi pelo legislador confinada»[7]. Nesta linha de pensamento parece apontar também, MARCELLO CAETANO que considerava o poder discricionário como uma excepção ao princípio da legalidade[8]. Em suma, subjacente ao pensamento de AFONSO QUEIRÓ ou de MARCELLO CAETANO, parece estar uma ideia de liberdade associada à discricionariedade, isto é, nas palavras de VASCO PEREIRA DA SILVA, «uma área deixada ao livre arbítrio da Administração, onde ela faz tudo aquilo que entende»[9]
Num outro prisma, encontramos uma acepção diferente da discricionariedade da atividade administrativa, assente numa visão ampla equivalente a um resultado normativo, como aliás preconiza DAVID DUARTE. Nas palavras do mesmo, «a discricionariedade administrativa (...) resulta sempre de uma norma[10].» Como resulta do disposto anteriormente, parece haver um exercício livre da função administrativa, mas importa estabelecer esses limites, pois de outro modo a discricionariedade administrativa a que aludimos remontaria porventura às suas raízes liberais. É que a Administração na sua génese “traumática”, servindo-me da metáfora de VASCO PEREIRA DA SILVA[11], concebia a legalidade como instrumento de defesa do particular em face da Administração, o que traduz uma margem de liberdade confinada à Administração, margem essa que nas palavras do mesmo autor não se traduzia numa liberdade mas sim numa arbitrariedade.
É neste âmbito de uma discricionariedade nos termos da lei, que focamos a nossa atenção. Numa concepção diferente, mas não de todo de afastar, aponta FREITAS DO AMARAL. Refere o autor que « a escolha da decisão a tomar não está apenas condicionada pela competência do órgão decisório e pelo fim legal», prismas aos quais já fizemos referência anteriormente, e continua o mesmo autor: «em termos de se poder afirmar serem indiferenciadamente admissíveis à face da lei todas as soluções que os respeitem»[12]. Apesar disto, a tônica adotada não é legalista na sua totalidade já que reporta aos princípios gerais que vinculam a Administração, na persecução do interesse público. Ora, é esta visão de discricionariedade que parece mais correcta, já que não há dúvidas que haverá sempre espaço à decisão, mas o que interessa para efeitos desta breve exposição, não é tanto o reconhecimento de uma ampla margem de liberdade conferida à Administração mas sim entender que a escolha realizada obedece sempre à lei, em termos tais que não há uma legalidade em sentido lato, mas sim uma juridicidade. Como afirma FREITAS DO AMARAL, «o poder discricionário não é um poder livre, dentro dos limites da lei, mas um poder jurídico delimitado pela lei.[13]»
Isto é, no poder discricionário, como acentua ENGISCH, «o exercício do poder de escolha deve ir endereçado a um escopo e resultado da decisão que é o “único ajustado”, em rigorosa conformidade com todas as diretrizes jurídicas, e particularmente legais, que são de tomar em conta, ao mesmo tempo que procede a uma cuidadosa pesquisa e a uma cuidadosa consideração de todas as “ circunstâncias do caso concreto”»[14]. No mesmo sentido, parece apontar VIEIRA DE ANDRADE, na esteira de ROGÉRIO SOARES[15], que « a discricionariedade não é uma liberdade (...), mas sim uma competência, uma tarefa, corresponde a uma função jurídica», função esse que fundamenta a actividade da administração»[16], já que « a administração não é remetida para um arbítrio, ainda que prudente, não pode fundar na sua vontade as decisões que toma»[17].
Cabe ainda uma referência a este respeito, a visão de VASCO PEREIRA DA SILVA, que começa por recordar o “trauma do liberalismo”, onde «mais do que discricionariedade, do que se tratava era de arbitrariedade da Administração, pois as leis (em matéria de liberdade e da propriedade) eram escassas e as limitações ao poder administrativo muito reduzidas»[18]. Já vimos como pode ser difícil conceber a discricionariedade como liberdade, uma vez que «o poder público só atua nos termos da lei, as suas escolhas são sempre determinadas pelo ordenamento jurídico, ou seja, nunca é livre»[19]. Por último no que toca a esta visão, e no mesmo sentido que VIEIRA DE ANDRADE, conclui o autor: «Quer se trate de poderes ditos vinculados, quer se trate de poderes ditos discricionários, está-se sempre perante o exercício de poderes legais, subordinados ao princípio da legalidade, pelo que deve ser sempre permitido o seu controlo judicial.[20]»
Em suma, não há dúvidas que a Administração goza necessariamente de uma margem de decisão, própria da organização administrativa. Contudo, não é por isso necessariamente livre, conceito infeliz que poderia redundar numa actuação à margem da lei e do direito, e deve por isso ser entendida nos termos do princípio da juridicidade[21].

João Santiago Neves
nº 56966


[1] Vide.AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3ª edição, 2016, p.65
[2] Vide.SOUSA, Marcelo Rebelo de, Lições de Direito Administrativo I, Lisboa, 1995, p.123
[3] Vide.AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3ª edição, 2016, p.67
[4] Vide.AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3ª edição, 2016, p.65
[5]Vide.AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3ª edição, 2016, p.68
[6]Vide.AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3ª edição, 2016, p.69
[7]Vide. QUEIRÓ, Afonso, Os limites do poder discricionário das autoridades administrativas, Coimbra, 1966, p.8
[8] Vide.CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, 10ª ed. (reimp.), Almedina, Coimbra, 1980, pp. 506 e ss.
[9] Vide. PEREIRA DA SILVA, Vasco, Do Princípio da Legalidade à Juridicidade. O Sentido Atual das Fontes de Direito Público, in Osservatorio sulle fonti, n. 3/2017. Disponível em: http://www.osservatoriosullefonti.it
[10]Vide. DUARTE, David, A discricionariedade administrativa e a competência (sobre a função administrativa) do Provedor de Justiça, in  O Provedor de Justiça – Novos Estudos, Lisboa, 2008, p.35
[11] Vide. PEREIRA DA SILVA, Vasco, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2003
[12] Vide.AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3ª edição, 2016, p.70
[13] Vide.AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3ª edição, 2016, p.70
[14] Vide. ENGISCH, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 219 e 220
[15] Vide. SOARES, Rogério, Direito Administrativo, p.64.
[16] Vide. ANDRADE, Vieira de, O ordenamento jurídico administrativo, loc.cit, pp. 46-47
[17] Vide. ANDRADE, Vieira de, O ordenamento jurídico administrativo, loc.cit, pp. 46-47
[18] Vide. PEREIRA DA SILVA, Vasco, Do Princípio da Legalidade à Juridicidade. O Sentido Atual das Fontes de Direito Público, in Osservatorio sulle fonti, n. 3/2017. Disponível em: http://www.osservatoriosullefonti.it
[19]Vide. PEREIRA DA SILVA, Vasco, Do Princípio da Legalidade à Juridicidade. O Sentido Atual das Fontes de Direito Público, in Osservatorio sulle fonti, n. 3/2017. Disponível em: http://www.osservatoriosullefonti.it
[20] Vide. PEREIRA DA SILVA, Vasco, Do Princípio da Legalidade à Juridicidade. O Sentido Atual das Fontes de Direito Público, in Osservatorio sulle fonti, n. 3/2017. Disponível em: http://www.osservatoriosullefonti.it
[21] Vide.RUFFERT, Mathias, Rechtsquellen und Rechtsschichten des Verwaltungsrechts, in HOFFMANN-RIEM - SCHMIDT-ASSMANN, VOSSKUHLE, Grundlagen des Verwaltungsrechts, vol. I, 2ª ed. Beck, München, 2012, pp. 1165 e ss

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