A boa fé no Direito Administrativo
A boa fé, oriunda do direito privado, traduz-se, hoje, num princípio geral
de todo o ordenamento jurídico.
Bibliografia
É com a revisão constitucional de 1997 que a boa fé passa a ser um
princípio vinculativo da Administração Pública, expressamente inscrito no artigo 266º/2 da Constituição da República
Portuguesa. Com a autonomização do princípio da boa fé pretendeu-se a
criação de um clima de confiança e segurança no âmbito da Administração Pública.
De igual modo, encontramos a boa fé inscrita no artigo 10º do Código do Procedimento Administrativo.
Este princípio impõe que a conduta administrativa se funde em valores
básicos do ordenamento jurídico, implicando que os procedimentos da
Administração Pública sejam consequentes e não contraditórios em função dos
fins que se propõe alcançar.
Nas palavras de Freitas do Amaral,
“entre as primeiras atitudes que a Administração toma no início de um
procedimento administrativo e as posições finais que acaba por assumir
posteriormente, a Administração não pode mudar injustificadamente de critério,
não pode dar o dito por não dito, não pode negar o que já havia prometido, não
pode formular novas exigências que não apresentou em tempo oportuno, não pode
querer culpar o particular por atitudes que ela própria o autorizou a tomar, ou
por atividades que o incitou a iniciar antes mesmo de formalizar o contrato.”
Segundo o mesmo autor, esta obediência à bonna fide, por parte da Administração Pública, deve ser um exemplo
para os particulares, como núcleo essencial do seu comportamento ético. Caso
contrário, nunca se poderá afirmar que o Estado é pessoa de bem.
A boa fé concretiza-se em dois princípios básicos: o princípio da tutela da
confiança legítima e o princípio da materialidade subjacente.
A noção da tutela da confiança
está subjacente a muitos institutos próximos do Direito Administrativo. O
artigo 167º do Código do Procedimento Administrativo e os limites impostos no
mesmo são exemplo disso.
A aplicação da tutela da confiança está sujeita, no Direito Administrativo,
aos mesmos pressupostos usados no Direito Civil: 1) um comportamento que gera uma situação de confiança; 2) uma justificação para essa confiança,
ou seja, a existência de elementos objetivos capazes de provocarem uma crença
plausível; 3) um investimento de
confiança, isto é, o desenvolvimento efetivo de atividades jurídicas
assentes sobre crença substanciada; 4) a
imputação da situação de confiança, implicando a existência de um autor a
quem se deva a entrega confiante do tutelado.
É importante compreender que, tal como sucede no Direito Civil, não se
verifica uma hierarquia entre estes pressupostos, e que, tal como defende Menezes Cordeiro, não são todos eles
completamente fundamentais, podendo a ausência de um ser suprida pela
intensidade especial com que um outro se verifique.
O princípio da tutela da confiança encontra várias concretizações
jusadministrativistas, mas é em sede de formação de contratos administrativos
que se afirma com especial força. Mutatis
mutandis, poder-se-ão chamar à colação os deveres laterias e acessórios que
decorrem do artigo 227º do Código Civil.
Relativamente ao princípio da materialidade
subjacente, este convoca a ideia de que o Direito não se basta com meras
atuações formais e exige que aos comportamentos corresponda uma vontade
material, que traduza uma ponderação finalística de cada conduta.
Muitas vezes, este princípio é ignorado por ser considerado incompatível
com o princípio da legalidade, que supostamente introduziria um formalismo tal
a que não era possível aquele subsumir-se, e ainda por se julgar o seu conteúdo
pouco útil, visto que estaria absorvido pelo princípio da proporcionalidade.
Esta mesma doutrina defende que a materialidade subjacente já adquire
relevância enquanto parâmetro das condutas dos particulares. Tal posição, com o
devido respeito, não é de acolher, uma vez que traduz uma mentalidade
autoritária da Administração.
Como vem a afirmar Marcelo Rebelo de
Sousa, a materialidade subjacente encontra consagração legal e explícita no
artigo 10º/2 do Código do Procedimento Administrativo. Nestes termos, seria
antijurídica qualquer tentativa de afastar a vinculação da Administração
Pública por via da materialidade subjacente. De facto, ao apelar ao “objetivo a
alcançar com a atuação empreendida”, o CPA introduz um vetor de aferição de
atuação, tanto dos particulares como da Administração, a ideia de que os
comportamentos correspondam à verdade material, e não à mera verdade formal.
A tudo o que foi dito, importa acrescentar que a boa fé se apresenta como
“válvula de escape” do sistema, apta a corrigir injustiças que, pela violência
que apresentam face à ordem jurídica, devam ser repudiadas.
AMARAL, Diogo Freitas do – Curso de Direito Administrativo, volume II, 3ª
edição, Almedina, 2016.
CORDEIRO, António Menezes – Tratado de Direito Civil II, 4ª edição,
Almedina, 2017.
SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de – Direito Administrativo
Geral – Introdução e Princípios Fundamentais, Tomo I, 3ª edição, Dom Quixote,
2008.
Sónia Duarte, nº 57315
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