Como entender a discricionariedade e a vinculação?



“Omelete da Quinta” – segredo bater as claras em separado das gemas 



Ingredientes:
 · 6 ovos
· 100 g de presunto
· 30 g de manteiga
· Uma grossa fatia de pão saloio, com 1,5 cm de espessura
· Sal e pimenta





A expressão “saloio” fala dum pão local, regional, dum pão de uma determinada realidade – portanto é um pão que pode ser o pão alentejano, o pão de Mafra, pode ser qualquer pão que tenha características que tenham a ver com esta realidade. Portanto, se eu fizer isto com pão Bimbo, eu estou a fugir à receita, mas, se fizer com pão alentejano ou pão de Mafra, o gosto será diferente, mas dentro da receita. Ou seja, discricionariedade e vinculação – eu não posso escolher pão de forma nem papo seco, porque isso é vinculado, mas, tenho a possibilidade de escolher pão alentejano, pão da padeira, pão de segunda, mil e uma coisas.

As fatias têm que ter 1,5 cm de espessura – e isto é vinculado. É que se tiver 1,4 cm ou 1,6 cm não tem problema, já se tiver 1 cm ou 2 cm é que fica diferente. Ou seja, mesmo aqui em que há vinculação, esta vinculação, apesar de tudo, ainda permite uma ligeira margem de escolha, mesmo que a escolha esteja muito limitada. É uma escolha que pode na prática não existir e ser limitada a zero.

Ovos. São ovos de galinha, não posso fazer isto com ovos de codorniz ou outra coisa do género. Agora se são ovos de galinha do campo, ou da cidade, ou das criadas em aviário, ou criadas numa casa de família, é uma escolha. Podem ser ovos de galinhas felizes ou tristes sou eu que escolho, têm é de ser de galinha. Eu não posso é utilizar ovos de codorniz, se não estou a violar a receita. É a mesma coisa que a Administração perante uma lei, tem a mesma margem de escolha e a mesma possibilidade: se eu usar ovos de codorniz eu vou estragar a receita, se eu não cumprir essa regra vinculada, eu estou a cometer uma ilegalidade. Portanto, tenho margem de escolha em relação a todos os aspetos discricionários, não tenho margem de escolha em relação aos aspetos que são vinculados.

Trinta gramas de manteiga, não serve margarina, não serve planta, mas manteiga pode ser de vários tipos e vai condicionar a escolha, pode ser a manteiga rançosa, dos Açores ou então podem ser aquelas manteigas que não sabem a nada. O gosto vai ser diferente, mas isso cabe a mim a escolha, cabe a mim a receita, é a minha criação enquanto intérprete de direito e aplicador da lei. Já se eu usar margarina eu estou a violar a receita, se eu não cumprir a regra vinculada eu estou a desrespeitar a lei.
 
Há sempre uma margem de escolha, e aspetos vinculados, a escolha nunca é total e nunca é livre, é uma escolha balizada pelas opções do legislador, e uma escolha que tem sempre aspetos vinculados, aspetos estes que nunca podem ser postos em causa (podem decorrer de princípios constitucionais).

Aquilo que eu fiz foi uma interpretação, que agora vai ser necessária quando apreciar as coisas com as quais vou fazer esta receita, decidindo em função da realidade concreta.


 Corte o presunto em pequenos cubos, deite-os na manteiga derretida, e deixe-os torrar durante dois a três minutos. Cortar o presunto em cubos, cubos é razoavelmente vinculada, e portanto, se eu cortar em pedacinhos demasiado pequenos, eu estou a estragar a receita, estou a fugir à vinculação. Se forem retângulos, não calculo que haja grande problema por causa disso, até porque ninguém nos disse quantos centímetros têm os cubos, isto corresponde à minha escolha, isto corresponde à minha discricionariedade ao fazer esta receita.

Deite-os na manteiga derretida, tenho que derreter manteiga, e deixe-os torrar durante dois a três minutos. O que é que é torrar? Torrar não é alourar, aí tenho um conceito indeterminado que tenho de começar por interpretar. Não nos diz se o lume é branco ou se o lume é no máximo, e isso vai ter consequências, até no modo de saber se são dois ou três minutos, e portanto eu vou deixar aquele presunto na frigideira até que ele tenha uma cor castanhinha, se é castanho mais claro ou castanho mais escuro, a opção é minha, se continua da cor do presunto, vermelho vivo, ou se fica preto, a receita está estragada, e portanto a minha escolha baliza-se entre estes dois aspetos vinculados, e a minha escolha existe dentro da possibilidade do castanho escuro ou do castanho claro, o negro é ilegal e o vermelho é também ilegal.

Corte quatro lascas de uma fatia de pão saloio e aloure-as na mesma frigideira.

Barre um prato côncavo para ir ao forno. Barre, deve ser com manteiga, mas não dizem, será que pode ser margarina, será que pode ser banha de porco, temos que interpretar? Ora bem, um prato côncavo, se eu em vez de um prato concavo usar um pirex, não deve haver problema, aqui a palavra chave é ir ao forno, a forma do prato é relativamente discricionária, portanto é uma matéria da minha responsabilidade.

 Disponha neste prato as fatias finas de pão, deite sal e pimenta. Sal e pimenta? Quanta? Não diz. Conceito indeterminado que gera um problema de interpretação, gera um problema de apreciação e gera um problema de decisão, aqui temos pura e simplesmente, deite sal e pimenta. Se eu não deitar sal e se não deitar pimenta estou a violar a regra. Se eu deitar a mais estou a estragar o prato. São os dois limites da vinculação. Porque eu já sou um cozinheiro experimentado e já é a segunda vez que faço esta receita, vou tomar ainda o cuidado de não deitar muito sal, porque o presunto já tem sal. Isto não me é dito! Eu sei porque fiz várias vezes, já experimentei e sei que isto tem consequências no prato. Se eu deitar mais sal para além de presunto corro o risco de deitar sal a mais. E eu não quero deitar sal demais. E temos aqui uma margem de discricionariedade que resulta da prática culinária, resulta de eu já ter feito esta experiência no outro dia e ter chegado a essa conclusão.

Depois disso “Parta os ovos, separando as gemas das claras”.

“Bata as claras em castelo pouco firme.”. Pouco firme é um conceito totalmente indeterminado. Em primeiro lugar, tem de ser interpretado. Depois vai gerar uma margem de apreciação ao bater as claras. E uma margem de decisão quanto a saber se está ou não de acordo com a receita. é algo que é da minha responsabilidade no quadro da interpretação desta norma discricionária, sendo certo que é preciso bater. Se não bater as claras em castelo, não tenho receita, estou a violar os poderes que são determinados.

“Misture tudo e coloque sobre o pão.”. “Distribua por cima os cubos de presunto.”

“Coza durante oito a dez.”. Oito a dez é uma coisa diferente. E não diz qual é a temperatura. Devia dizer qual é a temperatura. Era muito mais fácil se ele dissesse a temperatura. Como não diz qual é a temperatura tenho de ser eu.

Ora bem, aquilo que estivemos aqui a fazer é o que faz a Administração perante qualquer problema. As escolhas são sempre limitadas e determinadas pelas vinculações legais, nunca há liberdade de escolha. As escolhas são sempre marginadas pelas opções do legislador e estas opções estabelecem responsabilidade e é sempre possível controlar os aspetos vinculados em todos os poderes. No fundo, os tribunais podem controlar tudo, só que em relação às questões discricionárias o controle incide sobre os aspetos vinculados no exercício do poder discricionário.

A diferença entre o poder vinculado e o poder discricionário é que se se trata de um poder vinculado o tribunal controla integralmente a produção daquele resultado, se ele não se verificou estamos perante ilegalidade, se o poder é discricionário o tribunal controla os vínculos do exercício daquele poder discricionário.”

Conclui-se que os próprios poderes têm aspetos vinculados e aspetos discricionários – não o próprio ato.

A margem de “livre” decisão administrativa consiste num espaço de liberdade da atuação administrativa conferida por lei e limitado pelo bloco da legalidade, implicando, portanto, uma parcial autodeterminação administrativa.

Diz respeito a qualquer forma de atividade administrativa (regulamentos, atos administrativos, contratos administrativos e atos materiais).

Visto que a administração é uma função secundária do Estado, ao contrário da função política, envolve escolhas de segundo grau, subordinadas ao princípio da legalidade.

A margem de “livre” decisão tem como fundamentos:
·         A base jurídica que é a lei (estando sujeita à reserva de lei)
·         Razões de ser do ponto de vista político:
§  Limitação prática da função legislativa, pois os atos gerais e abstratos devem conter uma margem de abertura e favor da administração para que ela possa adaptar o sentido normativo aos casos concretos imprevistos pelo legislador e às evoluções enológicas, sociais e culturais.
§  O princípio da separação de poderes enquanto critério de distribuição racional das funções do Estado pelos seus órgãos. Este princípio conduz à limitação da densidade normativa, concedendo uma margem de liberdade administrativa em face do legislador, implicando ainda uma margem de liberdade da administração face à função jurisdicional.

A margem de livre decisão implica uma consequência fundamental: no seu âmbito, não existe controlo jurisdicional (na medida dessa liberdade que a administração possui).

É a denominada esfera do mérito: engloba a apreciação da oportunidade (utilidade da concreta atuação administrativa para a prossecução do interesse público legalmente definido) e da conveniência, de uma determinada decisão administrativa, em termos que podem levar a afirmar que ela prossegue de forma melhor ou pior o interesse público, mas não que é ilegal.

Porém o controlo jurisdicional mantem-se na aferição do respeito administrativo pelas vinculações normativas e pelos limites internos da margem de livre decisão – esfera da legalidade.

Existem 2 formas de margem de livre decisão:
  • *  A discricionariedade – consiste numa liberdade conferida por lei à administração para que esta escolha entre várias alternativas de atuação juridicamente admissíveis.
  • *  A margem de “livre” apreciação – resulta da atribuição pela lei, à administração, de uma liberdade na apreciação de situações de facto que dizem respeito aos pressupostos das suas decisões.


A discricionariedade pode ser de ação (agir ou não agir), de opção (escolher entre duas ou mais possibilidades de atuação predefinidas por lei) ou criativa (à criação de atuação concreta dentro do limites jurídicos aplicáveis.

Para detetar a discricionariedade é sempre necessário interpretar as normas. Deste modo, o exercício da discricionariedade implica sempre um raciocínio a partir da situação concreta para as opções de atuação legalmente conferidas e um teste de adequação concretamente escolhida em relação aos traços da situação concreta selecionada como relevante à luz do interesse público prosseguido.

A margem de “livre” apreciação pode ocorrer quando a norma jurídica contém conceitos indeterminados (atenção que indeterminados não é igual a classificatórios) que levam a que não se possa considerar existir apenas uma solução correta para a decisão de um caso concreto, ou pelo menos a que haja dúvidas acerca de qual é tal solução.

A margem de livre decisão só existe na medida em que seja conferida por lei e na medida em que não seja ultrapassado qualquer limite imposto pelo bloco de legalidade.

Os limites da margem de livre decisão decorrem ainda da existência constitucional de uma tutela jurisdicional efetiva dos particulares perante a administração (art.268º/4 e art.20º CRP).

Deste modo existem limites permanentes:


ü  O fim a prosseguir com a conduta administrativa habilitada
ü  A competência subjetiva para a sua adoção
ü  Vontade
ü  Existência de margem de livre decisão

Tendo em conta estas 4 vinculações prementes é sempre ilegal um ato praticado ao abrigo de uma margem de livre decisão em persecução de um fim diferentemente do fim legal, por um órgão incompetente, com um vício de vontade, ou se o poder em causa não existisse ou fosse totalmente vinculado.

Existem também limites ocasionais que se podem deduzir da interpretação da norma. E por fim temos os limites internos que são regulados pelos princípios da atividade administrativa pasmados no art.266/1 e 2 da CRP e presentes no CPA.

O professor Vasco Pereira da Silva concorda que dentro de cada poder há as duas margens de decisão. Porém acrescenta um terceiro momento inicial: a interpretação da lei, que também é um ato discricionário na 1ª margem de responsabilidade da Administração, dizendo que a interpretação da norma não é uma realidade vinculada.

A Administração começa por interpretar a norma, fazendo escolhas com base no texto da norma – está vinculada ao texto, mas as escolhas com base na interpretação são no âmbito discricionário.

Há um texto, há uma lei, que tem de ser interpretada e tem de ser aplicada – tudo isso implica uma realidade recriadora e que permite distinguir como em cada poder há aspetos discricionários e aspetos vinculados, em que as coisas se misturam num quadro de uma decisão que é da responsabilidade da Administração, mas que os Tribunais podem sempre controlar, em todos os aspetos vinculados.

Mesmo nos casos em que a escolha está vinculada, há uma margem mínima do que se pode fazer. Mas, se não se cumprir os aspetos vinculados há uma ilegalidade.

É preciso interpretar a norma e é a partir de conceitos indeterminados que temos a discricionariedade, depois há uma margem de apreciação seguindo-se a margem de decisão.

Quando a lei remete para regras extrajurídicas estamos no campo da vinculação, pois ao remeter para elas, a lei fá-las suas e incorpora-as na ordem jurídica, tornando-as juridicamente obrigatórias (impondo-as à Administração) em termos tais que a violação dessas normas é, para todos os efeitos, uma violação da lei que para elas remete.

·         Se a Administração não respeitar estas normas, sofrerá sanção como se violasse diretamente uma norma jurídica.

O que pode ser discricionário num atos da Administração?
1.       Momento da prática do ato
2.       Decisão de praticar ou não certo ato administrativo
3.       Determinação dos factos e interesses relevantes para a decisão
4.       Determinação do conteúdo concreto
5.       Forma a adotar para o ato administrativo
6.       Formalidade a observar na preparação ou na prática do ato administrativo
7.       Fundamentação ou não da decisão – na maior parte a lei impõe fundamentação mas nem sempre art.124 CPA
8.       Introdução de condições, termos, modos ou outras cláusulas acessórias.



·         Apontamentos das Aulas teóricas do Professor Vasco Pereira da Silva
·         Apontamentos das aulas práticas
·         AMARAL, Diogo Freitas de, “Curso de Direito Administrativo”, Volume II
·         CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Volume II

Yuliya Shevchuk 56702 


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