Conceitos Indeterminados e o Poder Discricionário


Não é raro o legislador utilizar conceitos vagos, ambíguos ou incertos. A “imprecisão” dos conceitos, encontrados na linguagem quotidiana, transportam-se para a linguagem jurídica. Ao contrário das ciências exatas, caracterizadas por conceitos rigorosos, a linguagem jurídica é marcada por figuras de estilo.


Os conceitos jurídicos indeterminados são aqueles cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos (por polissemia, ambiguidade, porosidade ou esvaziamento). São meio de tornar a lei permeável às mudanças ético-sociais.


Para que seja feita uma análise completa dos conceitos indeterminados é necessário liga-los ao poder discricionário do Estado. Será que um conceito jurídico gera sempre discricionariedade? Qual é a relação lógico-jurídica que existe entre os dois conceitos? Primeiro é necessário lembrar que o poder discricionário se baseia na margem de liberdade que a Administração tem para escolher, segundo critérios de razoabilidade, o comportamento cabível perante um caso concreto, com fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada a satisfação do interesse público.
Importa, então, saber se a interpretação de conceitos indeterminados é uma atividade vinculada ou discricionária e, por conseguinte, sindicável pelos tribunais.

É sustentado que a interpretação de conceitos jurídicos indeterminados é uma figura afim da discricionariedade, querendo dizer, uma realidade conceitual e regimentalmente distinta desta.
O que aqui está em causa é descobrir, com auxílio da própria norma, o “único” sentido possível da lei e não tornar relevante a vontade da Administração. Esta está vinculada, isto é, está obrigada a descobrir qual o sentido da lei (não discricionariedade). Havendo vinculação, existe, ao contrário do que sucede com a discricionariedade, controlo judicial.

Uma mais nítida perceção da heterogeneidade dos conceitos indeterminados, leva, hoje, o professor Freitas do Amaral a afirmar que estes não têm todos a mesma feição e que a lei se serve de atribuir discricionariedade à Administração. Temos que distinguir:

·       Aqueles cuja concretização envolve apenas interpretação da lei e de subsunção. Não se dá autonomia à vontade do decisor. O tribunal pode anular a decisão.

·       Aqueles cuja concretização apela já para “preenchimentos valorativos” por parte do órgão administrativo aplicador do direito.

Podemos ainda distinguir:

·       Conceitos cuja concretização não exige do órgão administrativo uma valoração eminentemente pessoal, mas sim uma valoração objetiva. Determinar valorações preexistentes num setor social “relevante”. O órgão administrativo guia-se pelas conceções morais e éticas dominantes. Sendo estas operações semelhantes à interpretação e subsunção, é possível defender a fiscalização judicial.

·       Conceitos que não são determinados, mas enquadrados pela lei, cabe à Administração procurar a solução mais adequada, atendendo ao interesse público mas seguindo o seu critério. É um espaço de conformação da Administração que não se cinge à fixação dos efeitos da decisão, antes se alarga igualmente à determinação das próprias condições da decisão.

O Professor Vasco Pereira da Silva, afirmando que a Administração continua balizada pelos princípios constitucionais e tem de fundamentar os critérios que usou, defende que existem não dois, mas três momentos na atuação administrativa: começando sempre pela interpretação da norma, pois também ela pode dar lugar a discricionariedade – a administração decide qual é a melhor interpretação daquela lei, naquele caso concreto; de seguida a administração pode ter a tal margem de apreciar, analisando as circunstâncias da vida; e por último, pode ter discricionariedade quanto à decisão, porque a administração no final pode ter várias soluções legalmente possíveis. Apesar de se estar a dividir a atuação administrativa em momentos distintos, “tudo isto corresponde a uma realidade integrada, e uma realidade que é um contínuo interpretar, apreciar e decidir”, “estes momentos podem coexistir numa única circunstância, num único momento”.
O Professor regente, tal como o Professor Freitas do Amaral, reconhece que nenhuma atuação da Administração é totalmente vinculada nem totalmente discricionária, cabendo apenas ao tribunal apreciar os aspetos que forem vinculados, deixando os discricionários à responsabilidade da Administração.

Após analisar os inúmeros argumentos sustentados pelas teorias supracitadas, concluímos que a solução para esta controvérsia pode apenas ser dada diante do caso concreto. Deste modo, há situações em que a existência de conceitos jurídicos indeterminados outorga um poder vinculativo; há outras em que a presença dos mesmos possibilita ao administrador público a escolha de mais do que uma opção válida. Neste último caso haverá discricionariedade.

Em suma, apesar das diferentes posições adotadas, entendo que devemos defender uma posição moderada, em que existe um conceito amplo e uno de discricionariedade que abrange tanto as “liberdades” no momento da apreciação dos pressupostos como no momento da tomada de decisão pela Administração, e também nos “juízos sobre aptidões pessoais ou avaliações técnicas especializadas, decisões com elementos de prognose, ponderação de interesses complexos e decisões com consequências políticas”. Estas decisões são sempre tomadas em busca da melhor solução para a satisfação do interesse público, decisões estas que são orientadas pelos princípios jurídicos.
A discricionariedade remete para uma repartição de tarefas entre a Administração e o Juiz, já que “a autoria dos atos e a inerente responsabilidade pela prossecução do interesse público legalmente definido cabem à Administração; a fiscalização da conformidade ou compatibilidade dessa atuação administrativa com as normas legais e os princípios jurídicos compete aos tribunais.”
Ana Rita Ferreira, nº 57345

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