Princípio da Boa-Fé


A boa-fé é o único de entre todos os princípios da actividade administrativa cuja teorização se pode afirmar originária da dogmática e do direito privados, exprimindo, hoje, inquestionavelmente, um vector geral de todo o ordenamento jurídico.

Teve consgração constitucional em 1997, onde se encontra no art. 266.º/2, CRP, e legal na revisão de 1996 do CPA, encontrando-se hoje, após a revisão, através do DL n.º 4/2015, de 07 de Janeiro, do CPA no respectivo art. 10.º.

A ideia geral da autonomização do princípio da boa-fé foi satisfazer a necessidade premente de criar um clima de confiança e previsibilidade no seio da Administração Pública.
A Administração deve dar o exemplo aos particulares da observância da boa-fé, em todas as suas várias manifestações, como núcleo essencial do seu comportamento ético. É um princípio que vincula não só a Administração, mas também os particulares nas suas relações com a mesma.

Pode-se identificar, seguindo a teorização do Professor António Menezes Cordeiro, dois princípios básicos, através dos quais é possibilitada a concretização do princípio da boa-fé que são o princípio da primazia da materialidade subjacente e o princípio da tutela da confiança legítima.
“Trocando por miúdos”, significa que a boa fé determina a tutela das situações de confiança e procura assegurar a conformidade material – e não apenas formal – das condutas aos objectivos do ordenamento jurídico.

O princípio da primazia da materialidade subjacente exprime a ideia de que o direito procura a obtenção de resultados efectivos, não se satisfazendo com comportamentos que, embora formalmente correspondam a tais objectivos, falhem em atingi-los substancialmente, ou seja, não basta apurar se tais condutas apresentam uma conformidade formal com a ordem jurídica, mas impõe-se, sobretudo, uma ponderação substacial dos poderes em jogo. Desvalorizando excessos formais, vem cobrir todas as situações em que as exigências formais desrespeitadas não devam implicar uma decisão negativa, nomeadamente se as finalidades que forma protege chegam a atingir-se. Este princípio proíbe, por exemplo, o exercício de posições jurídicas de modo desequilibrado ou o aproveitamento de uma ilegalidade cometida, por parte daquele que a cometeu, de modo a prejudicar outrem.
Este princípio não tem grande relevância como limite da actuação da actuação administrativa, em primeiro lugar, pelo facto de o seu conteúdo ser em grande parte restringido pela incidência do princípio da legalidade. Em segundo lugar, a desvalorização deste princípio reside no facto de o seu conteúdo útil pouco ou nada acrescentar àquilo que já decorre do princípio da proporcionalidade, já que o exercício desequilibrado de posições jurídicas não é nada mais do que o exercício desproporcionado da margem de livre decisão.
Consequentemente o seu alcance não ultrapassa o de mero quadro de referência à luz do qual devem ser estabelecidos os parâmetros básicos do ordenamento jurídico.
No entanto, adquire este princípio relevância enquanto parâmetro das condutas dos particulares no seu relacionamento com a administração.


O princípio da tutela da confiança tem já bastante mais relevo para o direito administrativo. Visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem. Entre as primeiras atitudes que a Administração toma no início de um procedimento administrativo tendente à formação de um contrato e as posições finais que acaba por assumir posteriormente, a Administração não pode mudar injustificadamente de critério, não pode dar o dito por não dito, não pode negar o que já havia prometido, não pode formular novas exigências que não apresentou em tempo oportuno, não pode querer culpar o particular por atitudes que ela própria o autorizou a tomar, ou por actividades que o incitou a iniciar antes mesmo de formalizar o contrato, etc. É nesta zona – a zona que separa a boa-fé da má-fé – que se situa a maior parte das vezes o reino do abuso de poder e do puro arbítrio administrativo. Um tal comportamento, sendo injusto, é desde logo ofensivo da norma constitucional que impõe o respeito da boa-fé.

Na lição dos professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, são cinco os pressupostos da tutela da confiança:
  1. Uma actuação de um sujeito de direito que crie confiança, quer na manutenção de uma situação jurídica, quer na adopção de outra conduta;
  2. Uma situação de confiança justificada do destinatário da actuação de outrem, ou seja, uma convicção, por parte do destinatário da actuação em causa, na determinação do sujeit jurídico que a adoptou quanto à sua actuação subsequente, bem como a presença de elementos susceptíveis de legitimar essa convicção, não só em abstracto mas em concreto;
  3. A efectivação de um investimento de confiança, isto é, o desenvolvimento de acções ou omissões, que podem não ter tradução patrimonial, na base da situação de confiança;
  4. Nexo de causalidade entre a actuação geradora de confiança e o investimento de confiança, por outro;
  5. A frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou.


Já segundo a lição do professor Diogo Freitas do Amaral, os pressupostos são quatro, apesar de consistirem, basicamente, no mesmo que a posição acima exposta. São eles:
  1. Existência de uma situação de confiança, traduzida na boa-fé subjectiva ou ética da pessoa lesada;
  2. Justificação para essa confiança, isto é, a existência de elementos objectivos capazes de provocarem uma crença plausível;
  3. Investimento de confiança, isto é, o desenvolvimento efectivo de actividades jurídicas assentes sobre a crença consubstanciada;
  4. Imputação da situação de confiança, implicando a existência de um autor a quem se deva a entrega confiante do tutelado.


Não existe entre os vários requisitos uma hierarquia, não sendo todos eles em absoluto indispensáveis devendo ser, então, encarados de modo global, sendo que a não verificação de um deles será em princípio relevante, mas pode ser superada pela intensidade especial de alguns – ou algum – dos restantes ou por outras circunstâncias pertinentes (ex: o decurso de grandes lapsos temporais).
O alcance do princípio enquanto limite da actuação administrativa é problemático, sendo que a sua violação gera, certamente, responsabilidade civil, mas não é claro que possa em qualquer caso implicar a adstrição da administração à adopção do comportamento esperado e mesmo a anulação de um comportamento contrário já efectivamente adoptado. O princípio da tutela da confiança deve ser então, de modo a dissipar dúvidas, compreendido fundamentalmente como limite da margem de livre decisão administrativa.
Este princípio conhece também afloramentos em vinculações normativas específicas, permitindo explicar, por exemplo, a irrevogabilidade, em princípio, dos actos administrativos favoráveis válidos (art. 140.º/1, b), CPA) e a irretroactividade desfavorável de actos jurídicos da administração (art. 128.º/2, a) e art. 145.º/3, b) CPA).


BIBLIOGRAFIA:
Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administativo, Volume II, 3ª Edição, Almedina, 2016;
Sousa, Marcelo Rebelo de; Matos, André Salgado de, Direito Administrativo Geral, Introdução e Princípios Fundamentais, Tomo I, 3ª Edição, Dom Quixote, 2008.


Manuel Figueiredo, nº 56637

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